quarta-feira, 2 de abril de 2008

Efetivação judicial do Direito à Saúde

No blog do Hugo de Brito Machado Segundo foi postada uma notícia sobre uma decisão do TRF da 5º região que, a pretexto de concretizar o direito fundamental à saúde, determinou que o poder público custear as despesas com o tratamento de saúde de uma paciente, e, caso não houvesse verba para tanto, que o dinheiro fosse retirado do orçamento destinado à publicidade.

Depois, no blog do George Marlmestein, havia essa mesma notícia, com a decisão do TRF. A decisão foi elogiada pelo George, que, aliás, já tinha elaborado sua dissertação de mestrado nesse tema, e defendia a possibilidade do remanejamento de verbas.

De início me opus à idéia, apresentei alguns de meus argumentos, prometi ler a dissertação do George e depois expor minhas razões de forma mais organizada, o que passo a fazer agora:

1. O direito à saúde está submetido ao principio da reserva do possível. Como um direito prestacional, ele será concretizado pelo poder público, tão logo haja disponibilidade financeira para tanto. Os recursos destinados a esse fim estão no orçamento.

2. A guarda da constituição cabe aos três poderes: legislativo, executivo e judiciário. Da mesma forma, o judiciário não detém o monopólio da interpretação constitucional. O legislativo, ao votar o orçamento e prever a quantia "z" para a saúde pública e a quantia "x" para os gastos com publicidade, está a interpretar a Constituição. O executivo também interpreta a constituição quando dá execução ao orçamento.

3. Vale destacar que o gasto com publicidade não é inconstitucional. Aliás, a CF/88 desde a sua promulgação, no art. 37, § 1º, prevê a possibilidade de propaganda de "atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos", estabelecendo ainda que ela "deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos".

4. Um juiz pode “elaborar o orçamento”? Ele pode dizer que a verba para publicidade será Z e não X? No meu ponto de vista, NÃO. A Constituição elenca atribuições. A atribuição de aprovar o orçamento é do congresso nacional. Aliás, o orçamento é do povo. O poder que um parlamentar tem para aprovar o orçamento foi-lhe conferido pelo povo. Da mesma forma, o povo escolheu o chefe do executivo, o qual mandará executar o orçamento.

5. O orçamento é lei apenas no sentido formal. Logo, os juizes só podem apreciar a sua inconstitucionalidade em sentido formal. No âmbito material, o orçamento é o chamam de "lei de efeitos concretos". Tem natureza de ato administrativo. Se o orçamento é um (ou tem natureza jurídica de) ato administrativo, a decisão do juiz de tirar uma verba daqui e mandar pôr ali, num juízo de conveniência e oportunidade do juiz, equivale a uma revogação desse ato. Um poder pode revogar atos de outro? A resposta também é NÃO, pois essa é uma das lições mais básicas que se aprende em Direito Administrativo. O próprio STF não admite o controle de constitucionalidade da lei orçamentária.

6. Mas aí podem dizer: Ora, o juiz não pode declarar a inconstitucionalidade de um dado tributo? Isso não pode causar um impacto orçamentário muito maior do que o remanejamento de verbas no orçamento para o tratamento de saúde? A resposta é SIM, mas há que se perceber o seguinte. Como já foi demonstrada, essa saída do judiciário de retirar verba destinada à publicidade não encontra respaldo jurídico. Não há ilegalidade na realização de publicidade pelo poder público. Por exemplo, se na lei orçamentária houvesse a previsão de "x" reais para a "Igreja Quadrangular do Triângulo Redondo", por exemplo, aí sim existiria flagrante inconstitucionalidade, já que é vedado ao poder público subvencionar qualquer tipo de igreja... Mas, no caso de verbas para publicidade, inconstitucioinalidade não existe.

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Essa é minha posição "em tese" sobre o assunto. No caso julgado pelo TRF há certas nuances que devem ser consideradas: o serviço era previsto, mas foi descumprido. De todo modo, ainda que se admita em casos assim, o remanejamento de verbas, aquela solução (retirar verbas da publicidade) não foi a mais correta. Por quê não retiraram da verba utilizada para a compra do "cafezinho" numa repartição pública, ou mesmo no Tribunal?

Existem outros argumentos metajurídicos para defender essa minha tese:

Bom senso é uma coisa que, infelizmente, nem todo mundo tem. Deixar essa "brecha" para o judiciário pode no futuro gerar muitos problemas. Posso imaginar, no futuro, juízes "governando", mandando fazer "A" e não "B" etc...

Os casos mais comuns de pedidos para o judiciário efetivar o direito à saúde são os de pacientes que buscam um dado tratamento, cirurgia ou remédio para a sua doença. Todos os dias a ciência avança e descobre novos tratamentos e cirurgias, métodos fantásticos. Da mesma forma o mercado farmacêutico, que todo dia descobre "a cura" - segundo aponta a propaganda - para diversas doenças. Quando o SUS decide fornecer ou não dado remédio ou tratamento é porque entende que aquele é o mais eficiente para a maioria dos casos. Infelizmente, o SUS não pode fornecer um remédio que custa R$ 1.000,00 a dose para todos os doentes.

Acho que tem juiz que pensa que o administrador é um perverso, sádico, que gosta de ver o povo morrer na calçada ou na fila do hospital. Da mesma forma, alguns administradores têm a impressão que os juízes são uns tiranos etc. É preciso encontrar um meio-termo... Certamente no Brasil ainda existem muitas deficiências, sobretudo no campo da saúde. É aquela velha lição de economia: "os recursos são escassos e as necessidades são infinitas". Acho que os juízes devem pensar qual é o melhor papel que eles podem cumprir para melhorar a situação da saúde pública efetivamente.

Um comentário:

George Marmelstein disse...

Rodrigo,

nossas discordâncias não são tão gritantes assim.

Veja o que escrevi na dissertação:

"A transferência de recursos (no caso, da propaganda institucional do governo para a
saúde) resolveria dois problemas: (a) primeiro, o problema de dinheiro, na medida em que
informaria de onde sairiam os recursos para o cumprimento da liminar; (b) segundo, aumentaria a
força retórica da decisão, já que ninguém questiona que a saúde e a vida são mais importantes do
que as propagandas institucionais do Governo, especialmente aqui no Ceará, onde era nítido que
a propaganda estava sendo utilizada para auto-promoção dos governantes.
Uma crítica que pode ser feita a esse ponto da decisão foi não ter sido dada uma maior
liberdade para o administrador na escolha da rubrica orçamentária de onde sairiam as verbas para
o cumprimento da liminar. O melhor teria sido apenas determinar que o administrador deveria
retirar a verba de alguma rubrica, indicando apenas como opção a propaganda institucional do
governo".

Escrevi o trecho acima criticando minha própria decisão.

George Marmelstein